Lídia Baís: Santa ou Pagã
Lídia Baís está mais viva do que nunca. A famosa frase que sempre profetizava aos familiares - ‘por minha causa vocês vão ficar na história’ - aos poucos vai fazendo sentido. Virou peça teatral, objeto de estudo acadêmico e biografia. Sua pequena obra começa a ser restaurada e os quadros expostos coletivamente, além de causar frisson no meio universitário, atraindo estudantes fascinados por sua história. Em 2005 foi uma das personalidades homenageadas do Festival América do Sul. É a volta por cima da campo-grandense que encaixotou os próprios quadros, viveu reclusa grande parte da vida e, sem dúvida, foi a primeira pessoa considerada artista em Mato Grosso do Sul.
Lídia Baís viveu entre 1901 e 1985. Seu pai, Bernardo Franco Baís, foi um dos fundadores da cidade e comerciante de sucesso. Após passar por vários internatos, a moça acabou indo morar no Rio de Janeiro para estudar pintura com Henrique Bernadelli, em 1926. No ano seguinte, fez uma viagem com o tio Vespasiano Martins para a Europa e entrou em contato com o surrealismo. Além disso, foi colega do pintor Ismael Nery durante uma temporada européia entre 1927 e 1928. Após o verdadeiro petardo cultural a que foi submetida, Lídia retornou ao Rio de Janeiro, estudou com os irmãos Bernardelli e fez estágio na Escola Nacional de Belas Artes com Oswaldo Teixeira. Em 1930, a família a obriga a retornar a Campo Grande, então uma cidade de 25 mil habitantes. Nesta época troca correspondências com o poeta Murilo Mendes, que lhe passa um pito na última das cinco cartas encontradas. “É preciso que você abandone completamente as fórmulas antigas, que de nada lhe adiantarão”, ordenava o poeta.
O estilo de Lídia pode ser dividido em dois períodos. A maior parte dos quadros segue o acadêmico-realista, a fórmula antiga a que se referia Murilo Mendes, como os retratos que ela fez de todos os irmãos, por exemplo. Mas o que impressiona e a diferencia é a fase modernista, em que flerta com o surrealismo. Ou no ousado Última Ceia de Nosso Senhor Jesus Cristo, em que se põe como o apóstolo preferido de Cristo. A artista tentou então abrir o próprio museu na década de 40, o Museu Baís. Como não conseguiu, mandou recolher a obra e se dedicou cada vez mais à clausura religiosa. Com isso, Lídia se tornou a artista biruta de Campo Grande. Todos sabiam que um dia havia pintado, mas nunca viam seus quadros.
Durante toda a sua vida, teve uma única exposição individual. Foi em dezembro de 1929 na Policlínica Geral do Rio de Janeiro. Não existem catálogos e uma das poucas provas do vernissage é uma foto em que Lídia aparece ao lado de Povina Cavalcanti, Murilo Mendes e amigos. Lídia só viu parte de seus quadros expostos novamente em 1979 e em 1983, dois anos antes de falecer. Nas últimas décadas de vida, no entanto, fechou-se e se dedicou à vida religiosa. Escreveu por volta de 1960 o livro “História de T. Lídia Baís”, em que repassa a sua vida e tenta se disfarçar ingenuamente atrás do codinome Maria Tereza Trindade.
O reaparecimento de Lídia Baís na cena artística de Campo Grande começou em 2003, quando o artista plástico Humberto Espíndola aceitou dirigir o Museu de Arte Contemporânea de Campo Grande com a condição de que o Governo do Estado assumisse o compromisso de restaurar a obra de Lídia Baís. Ele deixou o MARCO em dezembro de 2005 com o saldo de 25 quadros da artista restaurados com o financiamento da Secretaria e Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul. Com o belo trabalho de restauro da sul-mato-grossense radicada no Rio de Janeiro, Áurea Katsuren, finalmente a obra de Lídia pôde ser reunida pela primeira vez em uma exposição coletiva em Campo Grande.
A relação de Áurea com o trabalho de Lída começou em 1995, por meio de Espíndola, quando ocupou o cargo de Secretário de Cultura de MS e encontrou as obras de Lídia empilhadas no banheiro da sede do órgão estadual. A restauradora foi a responsável pelo primeiro lote de 25 quadros e atualmente trabalha em quatro quadros do segundo lote. Ela lembra que recebeu alguns quadros em estado deplorável, como o importante Micróbio da Fuzarca, que chegou todo rasgado. A obra de Lídia, aliás, foi vítima do descaso com a memória e a falta de sensibilidade. No casarão da família, Morada dos Baís, o primeiro prédio de alvenaria de Campo Grande construído em 1918, o exemplo está vivo para todos que vão visitar o lugar.
Depois que o pai de Lídia foi atropelado pelo trem que passava em frente à sua casa, a Morada foi transformada na Pensão Pimentel até 1979 e depois deu lugar a vários tipos de comércio, como escolas, sapatarias, casa lotérica, até chegar ao esquecimento e devastação. O lugar quase desabou literalmente, até ser revitalizado em 1995. Ninguém sabe a autoria, mas o fato é que pintaram as paredes de branco e com isso apagaram vários murais de Lídia. Sobraram três. Quer dizer, dois e meio. Quem entra no antigo refeitório transformado em quarto da artista, com a cama, cadeira de balanço, chapéus, fotos, material de pintura e os instrumentos pessoais (violão e harpa), estranha a parede com apenas a metade de um mural de Lídia. Quando o lugar começou a ser reformado, os pedreiros foram demolindo a parede com a obra junto. Sobrou a parte superior, uma homenagem de Lídia a Joana D’Arc, que aparece em cima de um cavalo em uma paisagem rural. Mais um ato que a artista jamais perdoou. Desconfia-se que, assim como alguns dos seus quadros, que os murais tenham passado por uma indisfarçável repintura.
(corta para matérias do Correio do Estado e sites em 12/07/2006 anunciando a parceria da Fundação Municipal de Cultura e o Instituto Patrimônio Histórico e Arquitetônico Nacional (Iphan) para a restauração dos 3 painéis (2 e meio?) de Lídia na Morada dos Baís. O trabalho será comandado pela restauradora do Iphan, Eliane Silveira Fonseca Carvalho. O 3 painéis são o pela metade em homenagem a Joana D’Arc, um retratando a Santa Ceia bem careta e outro, o mais bonito e ousado, mostrando Nossa Senhora cercada de anjos. Na mesma matéria afirma-se que o Museu Lídia Baís espera para agosto 7 obras restauradas no Rio de Janeiro)
Ainda na Morada, em cima da pequena cama de Lídia, que media apenas 1,45m e pesava menos de 40 quilos, pode-se ver sem moldura um dos quadros mais importantes, o Retrato da Família Baís, em que faz uma espécie de árvore genealógica da família. Lídia era a caçula de nove irmãos. O chassis do quadro foi consumido pelos cupins e caiu da parede, mas a restauração já está sendo estudada por Áurea, dando continuidade ao processo de valorização que a obra de Lídia já passa. Em novembro de 2005, por exemplo, estreou nos palcos de Campo Grande o monólogo Amor Sacro e Profano, passando a limpo a conturbada vida de Lídia na interpretação da atriz corumbaense Bianca Machado. O livro da professora Alda Maria Quadros Couto, Territórios do Assombro – Biodestino de Lídia Baís também é aguardado com grande expectativa, já que a autora trata o lado místico da artista.
Louca, suspeita de ter permanecido virgem por toda a vida, alucinada, capaz de entrar em transes que duravam semanas, Lídia Baís se torna também objeto de estudo dos universitários atraídos por suas histórias inacreditáveis e rompantes proféticos. Em uma montagem, por exemplo, constata-se o espírito provocador de Lídia. Em um quadro em que faz uma espécie de colagem, pode-se ver o rosto da artista, emoldurado por um chapéu branco dos anos 30, dentro do círculo e por sobre a faixa ‘Ordem e Progresso’ de nossa bandeira. E uma legenda: ‘Devido a uma visão, Lídia Baís foi colocada dentro da Bandeira Nacional’. Para completar, entre parênteses, está escrito: ‘Mais tarde entenderão por quê!...”
Um dos artistas que mais batalharam para a manutenção e valorização da obra de Lídia Baís foi sem dúvida Humberto Espíndola. Confira abaixo a entrevista concedida pelo maior ícone das artes plásticas do Centro-Oeste sobre Lídia Baís:
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